quarta-feira, 25 de setembro de 2013




Meu vô morreu dois dias atrás, no dia 22 de setembro. No mesmo dia em que a primavera começou. Eu achava que não queria escrever nada sobre isso em lugar nenhum. Entendi os motivos de todos os meus familiares que fizeram isso, mas eu não me sentia a vontade para fazer isso, simplesmente por não saber como verbalizar o sentimento de perda.

Talvez eu consiga fazer isso agora.

Desde muito pequena o meu avô foi uma das pessoas que eu mais admirei. Não pelas palavras difíceis que ele usava, pelos lugares legais para onde ele viajava ou pelos outros o chamarem de "Doutor Gerson". Eu gostava do meu vô porque nele eu tive alguém em que eu sempre pude confiar. Alguém de quem eu realmente gostava, alguém que se importava de fato.

Durante essa última internação, ele passou três meses no hospital. A cada visita eu via que o câncer levava mais uma parte dele. Pouco a pouco ele foi perdendo o movimento dos membros. Ele já estava frágil na cama, implorando por descanso, mas mesmo assim seus olhos tinham um brilho especial. Eu não sei direito como tornar esse sentimento em palavras, mas todas as vezes em que eu olhei para o meu vô eu sentia amor.

A última vez que o vi foi na sexta-feira. Cheguei cedo no hospital e ajudei no banho dele. Enquanto as enfermeiras limpavam suas feridas, ele chorava de dor e implorava para que aquilo acabasse. Ele pediu para eu ficar segurando sua mão e apoiando seu braço enquanto elas o viravam e foi o que eu fiz.

No velório do meu vô eu vi um bocado de gente dizendo o quão especial ele era, contando histórias que nem eu mesma sabia. Contando sobre as poesias que ele escrevia, sobre como agia e ajudava os outros, sobre como era pró ativo.

Mais do que os livros, as pinturas e qualquer outra coisa, meu vô me deixou lembranças incríveis.

Saber que eu nunca mais vou poder segurar as mãos do meu vô, ouvir ele dar risada das porcarias que eu costumava dizer e comer doce com ele enquanto a gente assiste o jornal me deixa infinitamente triste.

Eu lembro de milhares de tardes junto dele. Eu lembro de ficar deitada no tapete do escritório dele lendo enquanto ele trabalhava. Eu lembro de quando ele comprava chicletes escondido para meu irmão e eu, porque a minha mãe não deixava a gente mascar porque fazia mal para os dentes. Eu lembro de quando eu tive de operar meus cisos e ele me comprou um sorvete enorme e colorido para eu comer quando saísse do consultório. Eu lembro d'ele ter dito que sentiu orgulho de mim por eu não ter chorado naquela vez. Desculpa estar chorando agora, vô. Mas é que não deu para segurar.

Eu lembro de quando ele me colocava na cama e deixava a luz do banheiro ligada para eu não sentir medo e de que ele sempre deixava algo na cabeceira para eu ler. Eu lembro de acordar de manhã e de encontrar ele na cozinha, fazendo vitamina de abacate. Eu lembro de como era feliz ao ver ele descendo a escada externa da cozinha carregado de doces para comer com a gente perto da cama elástica. Eu lembro que uma vez ele foi me buscar na aula de violino e me levou para comer bolo, "só para a gente escapar da bagunça de casa" e como ele ficou envergonhado quando eu disse que a gente demorou porque era mais gostoso comer bolo do que varrer. Eu lembro de quando a gente brincava no tapete da sala e de que, quando eu fui descer a escada do seu escritório escorregando pelo corrimão e, sem querer, chutei o vaso caro da vó, você foi até a floresta (mesmo que já fosse de noite) e entenrrou ele para ninguém saber.

Mesmo no hospital a gente conseguiu ter conversas fantásticas. Eu lembro que ele disse que não queria perder a minha amizade nunca.

Eu fico com essa mania quase doentia de ficar relembrando momentos, garantindo que não vou esquecer como ele soava.

Amor é do que eu me lembro.

Eduardo, talvez eu não tenha te dito, mas a Eliana pediu para avisar que o vô estava pintando a casa quando soube que você passou no vestibular e que saiu com o celular na mão, contente, contando isso para todo mundo. Mãe, (Claudia), todas as vezes em que eu ia visitar o vô ele falava que você tinha feito amizade com as enfermeiras e que tinha feito todo mundo rir e deixado ele mais feliz. Pai, (Marcelo), o vô uma vez me disse que você era uma das pessoas mais éticas que ele conhecia. Maureen, o vô sempre falava que você estava crescendo rápido e que era um bocado inteligente.

Desculpa ter esquecido de falar essas coisas. Desculpa ter deixado para depois.

Vô, 'tou aqui, jurando, mais uma vez, que vou terminar a faculdade certinho, que vou ajudar todo mundo em casa e que não vou pintar o cabelo de cor de rosa. Juro por deus que vou manter o azul até quando der, porque azul era a cor que você gostava nele. Eu não vou esquecer que, na última conversa em que a gente conseguiu ter, você me disse que o azul era o seu preferido. Eu não vou esquecer de todas as coisas que você me pediu para fazer - desde aprender a dirigir até aprender alemão. Eu só fico triste porque agora não vai mais dar tempo de xingarmos coisas aleatórias em alemão, juntos.

Me desculpa pelo medo que comecei a ter ao te visitar no hospital. Desculpa pelo medo de atender o telefone toda vez que ele tocava. Desculpa chorar tanto. Desculpa não ter conseguido me despedir direito. Desculpa por todas as besteiras, desculpa pelas vezes em que eu dormi enquanto você precisava de algo. Desculpa não ter sido tão rápida quando precisava arrumar seus travesseiros. Desculpa não ter conseguido fazer nada quando, naquela noite, você segurou as minhas mãos e pediu para eu tirar a dor que você sentia. Eu juro que se eu pudesse eu teria tirado. Desculpa por terem deixado uma formiga em cima de você no seu caixão e por terem deixado seu terno desalinhado. Desculpa não ter tido coragem para arrumar.

Eu quero acreditar que você está melhor agora, vô. Que agora não tem mais câncer corroendo seus ossos, que agora não tem mais morfina te deixando dorpe e que agora você consegue comer chocolate sem sentir dor nem nada. Eu quero acreditar que está tudo melhor agora.

Eu provavelmente vou sentir sua falta a todo instante. Já me dói saber que eu não posso pegar o telefone para te ligar ou te mandar mensagem, que eu já não vou poder te contar do que li ou do que escrevi. Que a gente não vai conseguir escutar o CD do Rodriguez juntos mais uma vez, igual a gente fez no hospital.

Dizem que quando morre alguém que a gente ama, a gente morre um pouquinho também.

E eu sei que você provavelmente sabe, mas a gente te ama. Fica em paz e tudo mais. A gente se vê! Até mais e obrigada pelos peixes!

Do original: link.